Regime de bens e algumas
absurdas incomunicabilidades
Por Maria
Berenice Dias, desembargadora do TJRS.
O que é meu é
meu; o que é teu é teu; e do que é nosso, metade de cada um.
Essa é a lógica que rege o regime da
comunhão parcial de bens. Os bens adquiridos por qualquer dos
cônjuges antes do casamento são de sua propriedade particular. Já o
patrimônio amealhado durante a vida em comum pertence a ambos, pois
há a presunção de que houve mútua colaboração na sua constituição.
Sem dúvida, esse critério é o que
melhor atende a elementar princípio ético, preservando a
titularidade dos bens a quem os adquiriu. Aliás, não foi outro
motivo que levou o legislador a eleger o regime da comunhão parcial
quando, antes do matrimônio, não optam os noivos por outro regime
por meio de pacto antenupcial.
O casamento gera a comunicabilidade
dos bens em face da presunção de que houve conjugação de esforços
para sua aquisição. Inobstante tal possa não ser verdadeiro, ou
seja, mesmo que não tenha havido a participação de ambos, ainda
assim se instala o estado condominial.
Para não deixar dúvidas, explicita a lei algumas hipóteses (CC, art.
1.660). Assim, apesar de adquirido por só um dos cônjuges, e em nome
próprio, o bem passa a ser dos dois (CC, art. 1.660, I). Também se
torna comum o que é amealhado por fato eventual com ou sem o
concurso de trabalho ou despesa anterior (CC, art. 1.660, II).
O exemplo que sempre vem à mente é o
prêmio de loteria: mesmo adquirido o bilhete antes do casamento,
ocorrendo a contemplação depois das núpcias, o prêmio pertence a
ambos os cônjuges.
Outras especificações da lei deixam
evidente que a atribuição de titularidade está ligada à presunção da
comunhão de esforços. As benfeitorias realizadas nos bens
particulares de cada cônjuge entram na comunhão (CC, art. 1.660.
IV). A comunicabilidade existe também sobre os frutos dos bens,
tanto particulares, como comuns (CC, art. 1.660, V).
Todas essas explicações levadas a
efeito pelo legislador servem para realçar que incide o princípio da
comunicabilidade dos bens amealhados depois das núpcias. Isso porque
o casamento gera a comunhão de vidas (CC, art. 1.511), os cônjuges
têm o dever de mútua assistência (CC, art. 1.566, III) e ambos são
responsáveis pelos encargos da família (CC, art. 1.565). Portanto,
embora não haja a participação efetiva dos dois, há que dividir o
patrimônio comum, independentemente de quem o tenha adquirido.
Essa regra, no entanto, comporta
exceções. Assim, a par da consagração da regra da comunicabilidade,
há bens excluídos da co-titularidade (CC, art. 1.659). Ficam fora da
comunhão os percebidos por doação ou por direito sucessório, pois
pertencem somente ao beneficiário, mesmo que recebidos na constância
do casamento (CC, art. 1.659, I). A falta de colaboração do consorte
quando da aquisição de bem anterior ao casamento justifica a
incomunicabilidade do patrimônio amealhado por sub-rogação dos bens
particulares (CC, art. 1.659, II).
Porém, não só os bônus, também alguns
ônus não são compartilhados. Não há responsabilidade de um dos
cônjuges com relação às obrigações anteriores ao casamento assumidas
pelo outro (CC, art. 1.659, III). Talvez a regra que identifica a
responsabilidade referente às obrigações provenientes de atos
ilícitos seja a mais esclarecedora quanto a essa dinâmica (CC, art.
1.659, IV). O infrator responde pelos prejuízos decorrentes de seu
agir. No entanto, tendo havido proveito de ambos com o produto da
ação ilegal, a responsabilidade solidariza-se.
Se tais dispositivos sequer necessitam
de maior esforço para ser entendidos, outras hipóteses de exclusão
da comunicabilidade dos aquestos revelam-se de todo absurdas,
injustificáveis, injustas e, por tudo isso, inconstitucionais, é
lógico.
São excluídos da comunhão os livros e
os instrumentos da profissão (CC, art. 1.659, V), isso não só no
regime da comunhão parcial, mas também no da comunhão universal de
bens (CC, art. 1.668, V). Essa regra parece decorrer da presunção de
que tais bens foram adquiridos exclusivamente pelo cônjuge que deles
faz uso para o desempenho de seu trabalho. Trata-se de exceção ao
princípio da comunicabilidade e, ainda assim, é uma exceção
absoluta, por inadmitir prova em contrário. Não há qualquer motivo
para inverter regra que tem por base o pressuposto da solidariedade
familiar. Descabido atribuir exclusivamente a um dos cônjuges bens
adquiridos durante o casamento, pelo simples fato de destinarem-se
ao ofício profissional.
Cabe trazer como exemplo consultórios
dentários, tratores, caminhões e até sofisticadas aparelhagens de
sons, cujos valores sabidamente são muito elevados. Sem qualquer
fundamento, pressupõe a lei que foram adquiridos por quem os
utiliza. Porém, o que se vê diuturnamente é exatamente o contrário:
o esforço do par na aquisição dos meios para um deles desempenhar
seu mister.
Talvez a previsão legal tenha buscado
garantir o exercício profissional e, quiçá, assegurar a quem
trabalha condições de proceder ao pagamento dos alimentos ao outro
cônjuge e aos filhos.
Ainda assim, a regra não se justifica. Basta que se
assegure, por ocasião da partilha, que tal patrimônio fique com quem
os utiliza. Até é possível cogitar da indisponibilidade ou, quem
sabe, impedir a partilha ou a venda dos bens indispensáveis ao
exercício da atividade profissional. O que descabe é singelamente
atribuir o bem a quem o utiliza.
Conquanto tenha o legislador mantido
esta hipótese de exclusão da comunicabilidade, às claras que se
trata de dispositivo desprovido de sustentação dentro do sistema
jurídico. Nitidamente é fonte de enriquecimento sem causa de um com
relação ao outro, que, muitas vezes, fez enormes sacrifícios para
adquirir o instrumental necessário para o parceiro trabalhar.
Descabe atribuir a titularidade em
razão do uso exclusivo para fins profissionais. O uso não pode
alterar o domínio. Adquirido durante o casamento, o bem é comum. O
só fato de ser utilizado por um dos cônjuges não tem o condão de
excluir o co-proprietário. À presunção de que os bens amealhados
durante a vida em comum são fruto do esforço mútuo não pode ser
oposta presunção outra, agora absoluta, afastando a comunicabilidade
pelo simples fato de serem utilizados na atividade laboral de um
deles.
Mas esta não é a única desarrazoada
exceção à comunicabilidade, cuja aplicação se revela desastrosa.
Não há como excluir da universalidade dos bens
comuns os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge (CC, art.
1.659, VI), bem como as pensões, os meios-soldos, montepios e outras
rendas semelhantes (CC, art. 1.659, VII). Ora, se os ganhos do
trabalho não se comunicam, nem se dividem pensões e rendimentos
outros de igual natureza, praticamente tudo é incomunicável, pois a
maioria das pessoas vive de seu trabalho.
O fruto da
atividade laborativa dos cônjuges não pode ser considerado
incomunicável, e isso em qualquer dos regimes de bens, sob pena de
aniquilar-se o regime patrimonial, tanto no casamento como na união
estável, porquanto nesta também vigora o regime da comunhão parcial
(CC, art. 1.725). Assim, quando a família sobrevive dos rendimentos
do trabalho de um ou de ambos os cônjuges, acabaria instalando-se
sempre o regime da separação total de bens, ou melhor, não existiria
regime de bens.
De regra, é do esforço pessoal de cada
um que advêm os créditos, as sobras e economias para a aquisição dos
bens conjugais. Mas cabe figurar a hipótese em que um dos consortes
adquire os bens para o lar, enquanto o outro apenas acumula as
reservas pessoais advindas de seu trabalho. Consoante reza a lei, os
bens adquiridos por aquele serão partilhados, enquanto os que este
entesourou restam incomunicáveis.
Flagrantemente injusto que o cônjuge
que trabalha por contraprestação pecuniária, mas não converte suas
economias em patrimônio, seja privilegiado e suas reservas
consideradas crédito pessoal e incomunicável. Tal lógica compromete
o equilíbrio da divisão das obrigações familiares. Descabido premiar
o cônjuge que se esquiva de amealhar patrimônio, preferindo
conservar em espécie os proventos do seu trabalho pessoal.
Ao depois, há quem não exerça
atividade remunerada. Cabe tomar como exemplo o trabalho doméstico,
na maioria das vezes desempenhado pela mulher. Porém, a ausência de
remuneração no final do mês não significa que tais tarefas não
dispõem de valor econômico.
Estas atividades auxiliam, e muito, na
constituição do patrimônio, bem como possibilitam que haja sobras
orçamentárias. Ditas economias não podem ser contabilizadas como
salário do varão imune à divisão, enquanto a mulher, por não ter
retorno pecuniário, não é beneficiária de dito privilégio.
Esses dispositivos legais acabam sendo
fonte de terríveis injustiças. São hipóteses que não admitem
qualquer questionamento, gerando presunções absolutas em confronto
às normas que sustentam o regime de bens. Isto é o que basta para
justificar a inaplicabilidade dessas regras de exceção, desprovidas
de qualquer justificativa. Excluir da comunhão quer os ganhos dos
cônjuges, quer os instrumentos de trabalho utilizados por cada um
certamente gera desequilíbrio que deságua em prejuízos
injustificados e vantagens indevidas.
Os juízes não são meros aplicadores
da lei de maneira automática e impensada. Têm sempre de atentar para
o efeito concreto que o julgado vai produzir. Uma decisão que não se
afine com o princípio da igualdade, não encontre um meio de repelir
o enriquecimento sem causa ou deixe de impedir o favorecimento
indevido não pode ser chamada de sentença: ato emanado por quem tem
o dever de adequar a norma legal ao primado da Justiça.
(*) E-mail: mbdias@terra.com.br |